Filhos do Verão, de Anpu Varkey, narra um dia em meio à natureza pelos olhos de duas crianças

Esta entrevista, conduzida por Jincy Iype, foi republicada com permissão da STIRworld.com, uma plataforma global que promove a criatividade em arquitetura, design e novas mídias. Para acessar a matéria original, clique aqui.

Imagine o cheiro doce e picante do jambo-rosa pendendo das árvores, ao lado de uma plantação verdejante de seringueiras. Você caminha alguns passos e encontra um lago cintilante, e fica com vontade de mergulhar e nadar junto a peixes com olhos de vidro. Você ouve o baque repentino de uma jaca caindo no chão. Inclina a cabeça para trás e o céu azul sorri de volta, pontuado pela silhueta de altos coqueiros, envolvido pelo som do canto de pássaros e o cheiro da jaca, agora aberta no chão.

A artista indiana Anpu Varkey retrata essas memórias fantásticas em seu trabalho mais recente: Summer’s Children (publicado no Brasil pela Editora Balaio com o título de Filhos do Verão). Após três anos de produção, a história em quadrinhos silenciosa e monocromática relembra as próprias memórias de infância de Varkey na zona rural de Kerala, um estado do sul da Índia conhecido por suas paisagens verdejantes. De peixes criando ondulações visíveis na água a um coco caindo, Varkey consegue relembrar e traduzir para o papel essas boas memórias da natureza, todas desenhadas à mão usando o método do pontilhismo (uma técnica em que pequenos pontos distintos são aplicados em padrões para formar uma imagem). O livro, uma autopublicação da autora na Índia e que agora ganha uma versão brasileira pela Editora Balaio, não tem palavras, exceto algumas que ilustram sons.

O portal STIR conversou com a artista e grafiteira de 39 anos, conhecida por sua distinta arte urbana, como o enorme mural de Gandhi na Sede da Polícia de Delhi e o mural do gato brincalhão em Shahpur Jat, também em Delhi. Mesmo após oito anos de prática, ela não tem medo de experimentar e compartilhar suas vulnerabilidades. Varkey nos conta como Filhos do Verão nasceu e o que isso lhe ensinou.

Jincy Iype (JI): O que inspirou essa história em quadrinhos silenciosa?

Anpu Varkey (AP): A história se passa na zona rural de Kerala, e 90% dela é tirada das minhas próprias memórias. Por ser contada da perspectiva de uma criança (a minha), tudo é muito visual, formando a essência do livro. Esta é também a razão pela qual é uma história em quadrinhos silenciosa, sem texto. As crianças são mais expressivas em suas ações – tudo é extremamente sensorial para elas.

Eu estava viajando para Bangalore há alguns anos, e isso despertou muitas emoções, estar mais perto do sul e da paisagem familiar – os cheiros, os sons e as pessoas. Tendo passado meus primeiros anos em Kerala, essa experiência trouxe de volta muitas memórias, que suscitou a ideia do Filhos do Verão.

Mergulhei no processo por dois anos. Em seguida, passei mais um ano procurando editoras, o que foi bastante exaustivo porque, infelizmente, não há mercado para vender histórias gráficas como essa na Índia. Foi humilhante e doloroso receber um “não” de todos. Então, decidi publicar por conta própria, e isso também foi o que levou a uma exposição, uma extensão do livro, que foi a segunda edição da série Jovens Artistas de Nosso Tempo, no Museu de Arte Kiran Nadar, em Delhi.

“Ponto a ponto, a memória episódica de sonhos, brincadeiras, sons e paisagens da infância nos visita e nos toca. Anpu é uma atitude. Isso é o que eu gosto nela.”

Akansha Rastogi, Curadora Sênior de Exposições e Programas, Museu de Arte Kiran Nadar, em Delhi

JI: Conte-nos sobre o cenário e os personagens de Filhos do Verão.

AV: A obra é inteiramente baseada na paisagem de Kerala e no impacto que teve sobre mim enquanto crescia – como uma noz-moscada cresce, como é o interior de um poço – o livro tem tudo isso!

Não é um livro infantil, embora os protagonistas sejam duas crianças. Essencialmente, são dois irmãos em uma vasta paisagem, e um dia simples em suas vidas – olhando frutas, um elefante passando, observando adultos e suas atividades, correndo e pulando em poças. Na há nada realmente acontecendo no livro, não é um thriller, não é um drama, não há moral ou enredo – não há nada há se tirar dele.

JI: Por que os protagonistas são crianças? O que você quer nos contar sobre elas?

AV: O livro é, na verdade, baseado principalmente em meu irmão e eu correndo pelos campos quando éramos novos. Eu não queria revelar o gênero das crianças porque, na maioria das vezes, quando você pega um livro, você inconscientemente procura por um menino e uma menina, é uma narrativa confortável e conhecida. Eu queria deixar isso a critério do leitor e não seguir essa tendência. À primeira vista podem parecer dois meninos, mas na verdade são um menino e uma menina. Também reflete meu desejo de que ninguém seja definido como menina ou menino com base no que veste e na sua aparência.

JI: Seu estilo narrativo evoluiu radicalmente com o tempo – da criação de grafites nos muros ao desenho de milhões de pontos no papel. Como foi a experiência de criar o livro?

AV: Eu já tinha desenhado com caneta e tinta antes, mas desta vez queria que fosse diferente. Eu tive que me adaptar e chegar a uma linguagem que eu não conhecia – contar histórias em formato de livro. Foi tentativa e erro. Enquanto estava experimentando, me descobri pontilhando e milagrosamente floresceram desenhos. Foi um processo trabalhoso. Eu me lembro que no meio disso tudo pensei: por que diabos eu decidi pontilhar um livro inteiro? Enquanto paredes gigantes levam de três a cinco dias para serem concluídas, essas pequenas folhas de papel levaram dois anos!

Aqui, como uma romancista gráfica, estou dizendo a você o que olhar, estou te guiando, diferente de um mural, onde me concentro em criar impacto. É uma parede e as pessoas podem fazer dela o que quiserem.

JI: O que você aprendeu sobre você mesma durante essa jornada?

AV: Acho que aprendi a contar histórias, ou melhor, como não abordar uma história. Sabe, você deixa a história crescer um pouco, deixa ela ficar confusa e então decide o que incluir e o que descartar.

Sou o tipo de pessoa que tem uma ideia e vai direto para a execução, sem pensar muito nas consequências. Com Filhos do Verão foi um pouco diferente, porque fui forçada a pensar, analisar e escolher minhas batalhas.

“Se você quer fazer algo, faça, não espere que as coisas aconteçam. Faça as coisas acontecerem por você mesma. Se ninguém vai publicar seu livro, você vai esperar a vida inteira e se preocupar com o fato de que ninguém está interessado ou não vê a grandeza da sua arte?”

Anpu Varkey

Também acho que quanto mais autossuficiente você for, muitas outras forças ajudarão. Eu poderia ter esperado, mas porque decidi autopublicar, foi assim que surgiu a exposição, pela qual fiquei muito grata. Também compreendi que você não conta simplesmente uma história, vocẽ vive muitas coisas enquanto está escrevendo ou desenhando. Você passa a gostar do processo, valorizar esses momentos.

JI: Dado todo esse trabalho de amor nos últimos dois anos, o que você vai agitar* em 2020?

AV: Atualmente, estou trabalhando em uma nova história, talvez uma história em quadrinhos digital, é algo que nunca fiz antes. Ela se dá em torno do Lago Kaikondrahalli, em Bangalore. Estou pensando em algo mais sangrento, quase misterioso – quadros de um cachorro ensanguentado, profundezas de água turvas. Então, este ano, estou caminhando em direção a temas mais sombrios e encantadores… Estou agitando a escuridão em mim.


* No texto original, a entrevistadora usa a expressão “STIRring up”, uma referência ao nome do portal. Essa expressão pode ser traduzida como agitar, incitar, provocar.

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